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domingo, 17 de janeiro de 2010

Oficial de projetos do Unicef fala sobre a aplicação de medidas de internação


Ilanud




Mário Volpi é oficial de projetos do Fundo das Nações Unidas para a Infância (Unicef)
O ano de 2008 marcou os 18 anos da promulgação do Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA - 13 de julho) e dois anos da aprovação das diretrizes traçadas pelo Sistema Nacional de Atendimento Socioeducativo (Sinase). Ao longo desse período foram muitas as mudanças no contexto político e institucional do atendimento socioeducativo. Mário Volpi, gerente de projetos do Fundo das Nações Unidas para a Infância (Unicef) e coordenador do Programa Cidadania dos Adolescentes no Brasil, da instituição, foi entrevistado a fim de trazer uma reflexão sobre os desafios da aplicação das medidas socioeducativas de internação em nosso país.



Na realidade do cumprimento das medidas de internação estão inseridos 10.446 adolescentes (17,5% do total que cumpre medidas socioeducativas, tanto em meio fechado quanto aberto), segundo levantamento de 2006 da Secretaria Especial dos Direitos Humanos da Presidência da República. Os dados ainda apontam um déficit de 3.396 vagas para internação e 685 jovens e adolescentes mantidos em cadeias.

Ilanud -Qual é o cenário da aplicação de medidas socioeducativas de internação hoje no Brasil, do ponto de vista do respeito ao ECA?

Mário Volpi -
A partir do acompanhamento do trabalho e das discussões trazidas pelas organizações do poder público e da sociedade civil e pelos conselhos de defesa dos direitos da criança e do adolescente, percebemos a existência de três modelos de execução das medidas de internação em vigência no país. O primeiro revela a adaptação de alguns Estados às diretrizes socioeducativas do ECA e do Sinase. Configura um modelo descentralizado, em que o Estado cumpre seu papel de executor das medidas privativas de liberdade, os Municípios começam a assumir a implantação de medidas em meio aberto, o sistema de Justiça se organiza para que haja o devido processo legal – com a garantia de um advogado para a defesa do adolescente –, o Ministério Público fazendo a acusação do ato infracional atribuído e o julgamento sendo realizado pelo juiz responsável. Podemos concluir que, nestes casos, há um reordenamento institucional. Contudo, esse modelo representa uma minoria no País. Em quase metade dos Estados existe um modelo incipiente, voltado à inserção do adolescente na comunidade, com o estímulo à profissionalização do jovem, misturado a um aparato repressivo e punitivo, em total descumprimento do ECA. Por exemplo, não se respeitam os 45 dias de cumprimento da internação provisória e os adolescentes ficam dois, três meses esperando a sentença da Justiça. Temos ainda um terceiro modelo, do qual faz parte, por exemplo, o Distrito Federal e Minas Gerais, em que não existe um sistema socioeducativo de fato, que permite a recuperação do adolescente em conflito com a lei. O que há é um sistema arbitrário, em que as unidades de atendimento funcionam diferentemente entre si. Algumas são coordenadas pela polícia, outras, terceirizadas de uma forma bastante confusa. Acho que, nos dois últimos casos, a palavra que caracteriza o sistema socioeducativo é a contradição. É difícil para o Estado exigir do adolescente o cumprimento da lei, sendo que ele próprio não a respeita, nem implementa.

Ilanud - Como o senhor avalia a situação do tratamento dado aos adolescentes dentro das unidades de internação?

Mário Volpi - Nas condições em que se dá o atendimento socioeducativo, não é possível afirmar que não existem maus tratos e tortura. Quando se entra no sistema e conversa com os adolescentes, você ouve sempre que existem arbitrariedades, que a forma de punição dentro das instituições é ilegal. Em muitas delas, não há um regimento interno que explicite as formas de disciplina a serem aplicadas aos adolescentes que extrapolam em seu comportamento. Quando não existe a forma escrita, abre-se um campo para a violência, o abuso e a tortura.


O Sinase traçou as diretrizes gerais que, se implementadas, vão acabar com a discricionariedade e vão disciplinar as diferentes áreas da vida institucional
Ilanud - E a fiscalização dentro das unidades de internação?

MV - A fiscalização é uma responsabilidade do Ministério Público, dos Conselhos Tutelares, da sociedade, dos familiares e dos próprios adolescentes que devem ter espaço para expressar como o processo socioeducativo está acontecendo. O próprio sistema de fiscalização deve ser organizado para que se definam as atribuições de cada um dos atores envolvidos, visando à sua eficácia.

Ilanud - Valoriza-se a regulamentação em todos os processos da socioeducação. Qual é a importância das normas contidas no Sinase?

MV - O Sinase traçou as diretrizes gerais que, se implementadas, vão acabar com a discricionariedade e vão disciplinar as diferentes áreas da vida institucional. Desde a necessidade de um projeto pedagógico até um projeto arquitetônico, um programa de capacitação de profissionais, uma política de cargos e salários e a definição das funções de cada instância do sistema socioeducativo. Ele só funciona com uma política pública articulada nas três esferas de governo: municipal, estadual e federal. Nós estamos na fase de apoiar Municípios e Estados a definirem essa política. Os Estados precisam descentralizar as demais medidas e se especializar na privação de liberdade, a mais grave, que implica em uma contenção. Mas, começar a execução da medida socioeducativa pela internação é um grande problema, pois esgota, de partida, todas as oportunidades oferecidas para a reorganização da vida do adolescente. Neste ponto, o Sinase indica as diretrizes de ação para políticas que envolvam o diálogo entre Estados e Municípios, por intermédio dos Conselhos de Direitos da Criança e do Adolescente e das secretarias especializadas.

Ilanud - Um dos principais pontos do Sinase é a valorização das medidas em meio aberto, em detrimento à privação de liberdade. Muitas vezes o Poder Judiciário opta pela medida de internação, alegando uma suposta inexistência ou desarticulação de programas de medidas em meio aberto. Qual é sua opinião sobre isso?

MV – Se, por um lado, os programas em meio aberto não estão estruturados para assegurar à Justiça que encaminhando um adolescente a este tipo de medida será possível romper com a trajetória de vida no mundo do delito, por outro lado, quando não existe este impasse, há o conservadorismo da Justiça, com uma visão repressora e punitiva. A sociedade tem uma “sede” de punição que se reflete no comportamento dos juízes. Estes, ao invés de utilizarem sua capacidade de discernimento e seus conhecimentos jurídicos e sobre o sistema socioeducativo, preocupam-se mais em dar uma resposta à sociedade. Acho que existe uma fraqueza e até uma demagogia, por parte dos juízes, neste comportamento. É preciso capacitar o juiz para entender que seu papel é dentro de um sistema e, não isolado, ele deve trabalhar de forma harmoniosa com o Ministério Público, as Defensorias Públicas, o Poder Executivo e os técnicos em socioeducação. Nenhum personalismo ou autoritarismo por parte dos membros do sistema de garantia de direitos ajuda a melhorar a vida dos adolescentes em conflito com a lei.
  

Diz-se que os delitos cometidos por adolescentes estão cada vez mais violentos e que os crimes contra o patrimônio aumentaram, mas não há dados comparativos, ano a ano, que revelem o perfil dos adolescentes em conflito com a lei


Ilanud - Como o senhor avalia a interação entre unidades de internação e organizações não-governamentais (ONGs)?

MV - Sempre vai depender do contexto em que estão inseridas. Acho que a presença das ONGs no sistema socioeducativo é positiva, por ser um ator a mais que ajuda a desenvolver um olhar crítico sobre as ações, a promover atividades que “quebram” um pouco a rotina institucional mais pesada e a motivar os adolescentes. São um recurso pedagógico e de controle social muito importante. Mas sua eficácia depende do papel pedagógico exercido dentro do sistema socioeducativo. Às vezes, grupos religiosos e profissionais voluntários, por exemplo, realizam atividades que não têm vinculação com o projeto pedagógico adotado na medida socioeducativa. Nestes casos, a ação fica muito limitada, com um caráter assistencialista.

Ilanud - O Estado de São Paulo, por exemplo, implantou o sistema de gestão compartilhada, em que as ONGs contratam profissionais e desenvolvem programas.

MV - Neste aspecto, a implantação das ONGs acabou sofrendo distorções, em que a presença da entidade é a essência da ação, mudando o enfoque de papel auxiliar para o papel central no trabalho socioeducativo. Obviamente, percebem-se algumas mudanças, uma redução nos casos de violência dentro das unidades, mas nada disso encaminha para se consolidar um modelo socioeducativo sustentável.

Ilanud - Qual é o maior desafio que a sociedade brasileira tem pela frente em relação ao aprimoramento do sistema socioeducativo?

MV - Diz-se, por exemplo, que os delitos cometidos por adolescentes estão cada vez mais violentos e que os crimes contra o patrimônio aumentaram, mas não há dados comparativos, ano a ano, que revelem o perfil dos adolescentes em conflito com a lei. Existem pesquisas com diferentes metodologias, que analisam períodos diferentes. Qualquer declaração nesse sentido é especulativa. Sem dúvida, o maior desafio é conhecer o fenômeno para poder tratá-lo com mais seriedade. Muitos Estados constroem unidades gigantescas e depois acabam criando uma demanda por internação, porque precisam manter a estrutura. Outros não têm nenhum sistema preparado para atender adolescentes responsabilizados com mais rigor e estes jovens passam a conviver com os que cometeram crimes de menor potencial ofensivo. A inexistência de dados só favorece o sistema socioeducativo atual, pois estatísticas sérias e confiáveis nos levariam a perceber que o grande problema do nosso modelo socioeducativo não é a violência dos adolescentes infratores e, sim, a violência do próprio sistema.

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